Que cara teria o mundo sem a ciência e a tecnologia? O filme A Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Arnaud, representa de forma ideal a polarização de dois grupos pré-históricos no alvorecer da razão e da tecnologia. De um lado, o culto ao fogo; de outro, o domínio da tecnologia do fogo. A linguagem do primeiro compreende sons vocálicos, em sua maioria gritos e grunhidos, utilizados como pura expressão de sentimentos. Já o segundo emprega uma linguagem mais complexa e articulada. Enquanto o primeiro busca a copa das árvores como abrigo noturno e proteção contra animais ferozes, o segundo utiliza o fogo para se defender, cozinhar, iluminar, criar e processar, o que lhe possibilita desenvolver hábitos e processos, transformar a realidade e formar elementos socioculturais. O domínio dessa tecnologia, o fogo, prenuncia então a necessidade de aperfeiçoar sua capacidade de comunicação para expressar e preservar conhecimentos mais complexos.
O interesse por compreender o mundo e seus fenômenos naturais data das culturas pré-científicas. Por trás desse fascínio há um processo criativo cuja meta maior é buscar e alcançar conhecimentos mais profundos, capazes de dar sentido à vida, de preservá-la e aprimorá-la. Como bem comprova o mito da caverna narrado por Platão em A República, uma das mais poderosas metáforas da filosofia, o conhecimento nos liberta da cegueira e do medo. Quando trancafiado em uma caverna escura, preso a grilhões, restrito a olhar somente para a frente e a permanecer estático, o máximo que o prisioneiro pode enxergar pela ínfima fresta de luz que se infiltra são sombras e imagens imperfeitas da realidade, e não as coisas em si. Mas há lá fora um mundo infinito, real e iluminado, cheio de coisas e seres reais. Na condição de prisioneiro dessa caverna escura, sem nada ter visto e sem nada ver além do que ali se passa, imagina o prisioneiro que a única luz possível é aquela e que apenas isso é lhe dado o direito de enxergar. O que poderia lhe ocorrer se fosse libertado? — indaga Platão. A princípio a luz ofuscaria sua visão; depois, ao se acostumar com ela, enxergaria mais nítida e progressivamente a realidade e, com o tempo, perceberia que antes só vislumbrava sombras. E o que aconteceria se voltasse à caverna e contasse aos demais prisioneiros o que vira? Perplexidade, rejeição e também adesão. Ao sair da caverna, ele consegue ver além de suas percepções sensoriais e enxergar a verdadeira realidade, dialogando com as ideias e as possibilidades do mundo. Liberto, portanto, o ex-prisioneiro se depara com a possibilidade de se influenciar e ser influenciado pelas ideias e coisas do mundo, de adquirir informações relevantes, de obter explicações, de explicar ou de compreender o porquê e formar opiniões a respeito das coisas.
Saber que não estamos totalmente condenados ao determinismo ou às condições ou circunstâncias em que nascemos ou vivemos e que as influências do ambiente são também fundamentais ao desenvolvimento é um alívio, guardadas as devidas proporções dessa afirmação, dada a controvérsia que incita. São nossas comichões que nos estimulam a sair da caverna mesmo quando tudo parece indicar que não há nada a buscar. Se isso se aplica ao ser humano enquanto indivíduo, estende-se de igual modo aos grupos, sociedades, cidades, países e, portanto, ao mundo. Só estaremos condenados a viver aprisionados a uma circunstância, ignorados ou ignorando, enquanto não houver no ambiente as condições propícias à aplicação de nossas capacidades de desenvolvimento cognitivo, sociocultural, científico e tecnológico.
Como afirma o neurologista Robert Burton, em seu livro On Being Certain, quando as pessoas assumem uma postura incontestável diante de crenças, convicções ou opiniões, isso pode prejudicá-las porque não raro esses pontos de vista são enganosos. Para Burton, embora a certeza que alimentamos em relação a convicções não comprovadas nos leve a desenvolver uma incisividade que nos faz agir de forma decisiva em momentos de crise, muitas vezes presumimos em demasia e nos metemos em apuros. Por isso, precisamos sair da caverna para ver com nossos próprios olhos o que de fato há no mundo. Dessa maneira, podemos formar um cabedal que nos permita andar com os próprios pés, pisando firme no concreto, e não apenas conjecturar.
Hoje já se fala em trabalhadores da informação e do conhecimento. Da era industrial, saltamos para a era do conhecimento, em que, apoiados por uma nova mentalidade e novas habilidades e instrumentos, somos capazes de liberar nosso potencial e buscar o desenvolvimento tanto em nível individual quanto social.
Tudo isso não seria possível sem a ciência e a tecnologia, uma via de mão dupla para o desenvolvimento, não apenas de uma nação, tomado em seu sentido de prosperidade econômico-financeira, mas também do indivíduo e do âmbito sociocultural, político e ambiental. Estar condenado à cegueira e prisão da caverna de Platão significa estar subjugado a um ambiente estático e escuro. Nessa condição, independentemente da entidade em questão, predominam o determinismo, a falta de desenvolvimento, a dependência, as influências unidirecionais, a pobreza econômica e cultural, dentre outros fatores.
A ciência e tecnologia pautadas pela ética são fundamentais ao desenvolvimento de qualquer nação, não há dúvida. Ainda que disponha de recursos naturais, a riqueza natural, por si só, não é suficiente para a expansão de uma sociedade. Não basta ter e extrair. É necessário processar e restituir. E para isso os meios são imprescindíveis. Prova disso são os países ricos em recursos naturais, mas pobres em recursos tecnológicos e/ou científicos e, portanto, pouco desenvolvidos.
O ambiente cultural não está dissociado do ambiente socioeconômico. Na verdade, ao que tudo indica, uma evolução paralela parece essencial. No primeiro, temos o setor educacional, a pesquisa (que se bifurca em aplicada/tecnológica e pura/teórica e experimental), a ciência, o conhecimento e a divulgação científica; no segundo, o setor produtivo, o desenvolvimento de produtos e serviços, a inovação, o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento humano. Podemos constatar, portanto, que esses dois ambientes caminham lado a lado e em grande medida são causa e efeito.
O país que privilegia a produção científica e a geração de tecnologia de ponta alcança posição de destaque, mas precisa investir em educação, pesquisa e desenvolvimento, formar recursos humanos, criar uma cultura científica na sociedade, ganhar independência tecnológica e promover o compartilhamento de conhecimentos, técnicas e processos.
Enquanto na pré-história o elemento responsável pela polarização era o fogo, como pudemos ver no início deste artigo, hoje o mundo contemporâneo é polarizado pelo conhecimento, pelo domínio científico e pela capacidade de inovação tecnológica. Para viabilizar esse desenvolvimento, é preciso sair da caverna. É justamente a desigualdade nesse domínio que enseja essa polarização e, por conseguinte, as relações de poder. A falta de conhecimento pode nos prejudicar, e provavelmente por isso alimentemos falsas convicções, ignorando que há um mundo lá fora maior e mais iluminado, factível a todos. Por trás do desenvolvimento de um país estão a ciência e a tecnologia, mas à frente de ambas os seres humanos e sua evolução. Se delas dependemos, também de nós elas dependem.
Por Beth Honorato, jornalista.
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Um comentário:
Muito bom!
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